Com data de 3 de Abril de 2024, o Tribunal Constitucional, com unanimidade de dez juízes, adoptou o acórdão n.º 833/2024, em que eram recorrentes José Filomeno dos Santos, Valter Filipe, Jorge Sebastião e António Manuel. Tratou-se de uma decisão do famoso “caso dos 500 milhões”.
Fonte: Maka Angola
A conclusão do Tribunal foi que o acórdão condenatório do Tribunal Supremo violara os princípios constitucionais da legalidade, do contraditório, do julgamento justo e conforme, e do direito à defesa. Como consequência, “os autos devem baixar à instância devida, para que sejam expurgadas as inconstitucionalidades verificadas, ao que se seguirão os trâmites subsequentes que se mostrem cabíveis” (acórdão n.º 833/2924, p. 22).
São vários os comentários e as consequências que se retiram deste acórdão, que em certa medida pode ser chamada “histórico”, sobretudo pelo provável impacto que terá na actual metodologia utilizada no combate à corrupção.
Em primeiro lugar, do ponto de vista do sistema, demonstra uma evolução necessária do Tribunal Constitucional rumo a uma adjudicação independente. Tal caminho, que já tinha sido sugerido pelo acórdão n.º 845/2023, referente à atribuição a órgãos de justiça de dez por cento dos valores recuperados no combate à corrupção, sai agora reforçado. Note-se, porém, que se trata de uma transição, de um caminho que será forçosamente feito com prudência. Não é mais, nem menos que isso.
O acórdão em si mesmo está elaborado segundo o formato próprio de uma peça desse género. Sem tamanho excessivo, concreto, indo aos pontos essenciais, embora com aquilo que parece ser uma desatenção, que referiremos mais à frente. Nota-se uma boa evolução na doutrina citada. Já não é apenas a cópia de autores portugueses, havendo uma preocupação salutar em diversificar as inspirações, desde logo com académicos que se debruçam sobre Angola, como Vasco Grandão Ramos e vários outros estrangeiros, como Tonini, Stern e Becker.
Há três tipos de consequências que o acórdão acarreta: consequências para este caso, consequências para outros casos e consequências para a metodologia utilizada no combate à corrupção. Vejamos cada uma delas.
Em relação às consequências para o caso concreto, isto é, para José Filomeno dos Santos, Valter Filipe e os restantes, o acórdão não os absolve directamente.
Em termos técnicos, o processo não acaba aqui. O que se passa é que o processo baixa agora para o Tribunal Supremo, para que este “reforme a decisão em conformidade com o julgamento sobre a questão da inconstitucionalidade” (art.º 47, º, n. 2 da Lei do Processo Constitucional).
Quer isto dizer que o Tribunal Supremo tem de reabrir o processo deliberativo e incluir os aspectos enunciados pelo Tribunal Constitucional. Não se trata de um novo julgamento, mas de uma nova deliberação que contará com os aspectos da decisão constitucional.
Contudo, aqui parece haver um problema que resulta de alguma imperfeição da decisão constitucional. O Tribunal Constitucional elencou dois grupos de violações constitucionais.
O primeiro grupo refere-se à violação dos princípios da presunção de inocência, da defesa e do contraditório (pp. 8-15). Se bem se entendeu, aqui o aspecto relevante foi a não admissão no processo da carta-resposta do antigo presidente da República, José Eduardo dos Santos. Portanto, afigura-se simples o papel do Tribunal Supremo neste caso: admitir e ponderar os efeitos materiais desta carta na culpa ou inocência dos arguidos.
Mais difícil é a ponderação do segundo grupo de violações constitucionais identificadas pelo Tribunal Constitucional, que se refere à inexistência de um julgamento justo e conforme (pp. 18-21). O Tribunal escreve, e cita-se: “da análise do conteúdo da decisão, objecto do recurso, se pode verificar a desconformidade constitucional de certos procedimentos tomados no decurso do processo, como é o caso da não admissibilidade de prova documental relevante (Carta do antigo Presidente da República de Angola)” (p. 21).
Neste ponto fica-se sem saber quais são os outros procedimentos que o Tribunal Supremo não teve em conta.
Questiona-se se, afinal, o que está mal é apenas a não consideração da carta de José Eduardo dos Santos ou se há algo mais. Neste aspecto, o Tribunal Constitucional não foi cuidadoso e deixa uma injunção indeterminada, que possivelmente necessitará de um pedido de aclaração.
É fácil voltar a deliberar considerando a carta de José Eduardo dos Santos, mas não é fácil fazê-lo se o Tribunal Constitucional estiver implicitamente a referir outras violações concretas, que no final não enumera.
No final de contas, tudo se pode resolver em termos práticos, pois o Tribunal deixa uma sugestão discreta, ao considerar que a carta do presidente da República José Eduardo dos Santos poderia constituir a base da fundamentação da própria decisão do Tribunal Supremo (p. 21), aparentemente implicando que a actuação dos arguidos estava justificada pelas ordens de José Eduardo dos Santos, devendo assim ser absolvidos.
Se for esta a posição do Tribunal Supremo, isto é, que a carta-resposta de José Eduardo dos Santos iliba os arguidos, tal tem implicações óbvias noutros processos, como o dos generais Kopelipa e Dino. Também aí, segundo as notícias vindas a público, existem declarações de José Eduardo dos Santos. Estas, forçosamente, com a jurisprudência agora estabelecida, têm de ser tidas em conta. Não podem ser ignoradas.
Por isso, a tarefa do Tribunal Supremo é fundamental, tem de pesar bem as declarações do antigo presidente da República. Depois disso, há duas vias: ou se considera que o único responsável foi José Eduardo dos Santos, e os vários arguidos que nos vários processos agiram sob suas ordens são absolvidos; ou o Tribunal Supremo considera que, mesmo assim, o dever de obediência a ordem de superior hierárquico cessa quando o cumprimento da ordem conduzir à prática de qualquer crime (art.º 33, n.º 2 do Código Penal), podendo existir condenações. Veremos a posição que o Tribunal Supremo toma.
Finalmente, cumpre fazer uma curta reflexão sobre o futuro da metodologia utilizada no combate à corrupção em Angola. Muito provavelmente, esta decisão do Tribunal Constitucional, aliada à deliberação passada no caso São Vicente, do Grupo de Trabalho sobre Detenção Ilegal das Nações Unidas, coloca em crise os procedimentos voluntaristas que têm sido seguidos no combate à corrupção. Os juízes passarão a ser muito mais cuidadosos, as formas respeitadas. É certamente altura de uma profunda revisão dos métodos no combate à corrupção, sob pena de, no final, esse combate voltar ao ponto de partida: ao zero.