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Censo de 2024 em Angola: atrasos, desorganização e denúncias abalam credibilidade do processo

by REDAÇÃO

Previsto como o primeiro censo digital da história do país, o Recenseamento Geral da População e Habitação (RGPH) de 2024 deveria ter apresentado os resultados preliminares até maio deste ano. No entanto, o silêncio persiste, alimentando dúvidas sobre a execução e credibilidade do processo que envolveu mais de 92 mil técnicos e consumiu mais de 50 mil milhões de kwanzas, dos quais mais de um terço foi destinado à aquisição de tablets.

Sob a liderança do ministro de Estado e chefe da Casa Militar, general Francisco Furtado, o processo censitário foi marcado por atrasos em todas as fases. A cartografia, fundamental para a operação, foi concluída apenas três meses antes do início do censo, originalmente agendado para julho de 2024. A formação dos recenseadores também foi comprometida — muitos foram recrutados fora do prazo, sem o devido treinamento ou sequer contato prévio com os equipamentos.

Relatos de campo, colhidos junto a recenseadores e cidadãos, denunciam falhas graves, desde a ausência de supervisão até substituições políticas nas listas de técnicos. A alimentação, segurança e alojamento das equipas foram negligenciados, enquanto milhões eram gastos com tecnologia mal implementada.

População ignorada e dados simulados

Em bairros como o Zango 8000, em Luanda, moradores afirmam nunca terem sido entrevistados, apesar de terem recebido o selo do censo colado nas portas. Situações semelhantes foram registradas em outras províncias, como no bairro Txifutxi, no Moxico. “Não passaram sequer pela minha rua”, denuncia um residente.

Fontes da Comissão Multissectorial de Apoio à Realização do Censo (CMARC) confirmam que houve falta de pessoal para fiscalização e que muitos recenseadores limitavam-se a colar os selos e seguir adiante, sem realizar as entrevistas obrigatórias com os responsáveis familiares.

O cartógrafo José E. relata desorganização generalizada e interferência partidária no processo, com a substituição de técnicos formados por membros ligados à JMPLA, alguns sem qualquer conhecimento de geografia ou informática. A má distribuição das equipas, aliada à ausência de metodologias adequadas, como a técnica da serpentina em zonas periféricas, comprometeu ainda mais a recolha de dados.

Tensão social e boicotes locais

Além da má organização, o censo enfrentou resistência popular. Em bairros como os Lotes do Prenda, moradores impediram a entrada de recenseadores. Casos de agressões foram relatados, fruto da desconfiança crescente da população em relação ao governo. Em zonas rurais como Kalotchelen (Cubal), dois grupos de recenseadores foram expulsos pelas comunidades, que protestavam contra promessas não cumpridas. O terceiro grupo só conseguiu trabalhar após negociações com autoridades locais — mesmo assim, sob ameaças e tensão, muitos abandonaram a missão antes do fim.

Segundo Tiago Tchimbassi, supervisor em Kalotchelen, alguns recenseadores não sabiam usar os tablets, nem conduzir entrevistas. Ele também denunciou cortes nos pagamentos acordados e ausência total de apoio logístico por parte da organização do censo.

Tentativa de contornar o fracasso

Diante das falhas acumuladas, o Instituto Nacional de Estatística (INE) iniciou um “Inquérito de Cobertura”, supostamente para verificar a qualidade dos dados, mas que, na prática, visa reconstruir uma base estatística comprometida. O processo está a ser conduzido com apoio do Fundo das Nações Unidas para a População (FNUAP), o que levanta questionamentos sobre o envolvimento da ONU na legitimação de dados potencialmente manipulados.

Apesar das críticas, fontes ligadas à CMARC defendem que Angola poderá dispor da maior base estatística da África Austral. Especialistas, no entanto, contestam. Segundo uma análise independente, qualquer tentativa de apresentar resultados será marcada por incongruências e falta de confiabilidade.

A suposta modernização tecnológica acabou por ser apenas fachada para um processo desorganizado e politizado. Num contexto de crescente desconfiança entre o governo e a população, a falha na execução do censo representa não apenas um desperdício financeiro, mas um golpe à democracia e ao planeamento racional do país.

O fracasso do Censo de 2024 transcende erros técnicos: ele evidencia uma gestão pública marcada pela improvisação, partidarismo e ausência de responsabilidade. A contagem da população, pilar de qualquer política pública séria, foi transformada num exercício de ficção administrativa. E a Angola que mais precisa de ser contada — aquela das periferias, dos campos e dos esquecidos — ficou, mais uma vez, fora das estatísticas.

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