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Direito na Lusofonia: Entre a tradição e a necessidade de autonomia Jurídica

by REDAÇÃO

No atual cenário dos países lusófonos, é comum ouvir falar em “direito da lusofonia” como se existisse uma matriz jurídica comum que unisse os Estados de língua portuguesa. No entanto, essa noção é mais retórica do que real. Não existe, de fato, um direito lusófono. O que temos são países que utilizam o português como língua jurídica, mas que seguem trajetórias legais distintas, sem constituírem uma verdadeira família jurídica comum.

Esse tema voltou ao centro das discussões com a realização, em Luanda, do XI Congresso Internacional de Direito na Lusofonia, entre os dias 13 e 16 de maio. Organizado por uma comissão liderada por Laurinda Cardoso, presidente do Tribunal Constitucional de Angola, e com o procurador-geral da República, Hélder Pitta Gróz, como figura de honra, o evento reuniu juristas e académicos de diversos países lusófonos.

Não há dúvidas de que iniciativas como esta são valiosas para o intercâmbio de ideias e a valorização do conhecimento jurídico entre países que partilham a língua portuguesa. No entanto, o título do congresso – “direito na lusofonia” – levanta questões conceituais importantes. Ele sugere, mesmo que indiretamente, a existência de um sistema jurídico lusófono coeso, o que não se sustenta na prática.

O Brasil, por exemplo, embora partilhe a língua portuguesa, desenvolveu um sistema jurídico com identidade própria, fortemente influenciado pelo modelo anglo-americano. A linguagem jurídica brasileira, inclusive, é substancialmente distinta da portuguesa. Já o direito português, que poderia ser considerado o “berço” de uma suposta lusofonia jurídica, enfrenta hoje uma crise de formalismo excessivo, influências germânicas pouco adaptadas ao contexto local e uma prática judicial que muitas vezes prioriza a forma em detrimento da justiça. A lentidão processual e a insegurança jurídica tornaram-se marcas preocupantes do sistema português.

Em Angola, o percurso jurídico pós-independência foi moldado por diferentes fatores. Nos primeiros anos, a guerra civil impôs limites evidentes ao desenvolvimento de um sistema jurídico próprio. A legislação foi, durante muito tempo, uma cópia direta da portuguesa, o que é compreensível no contexto da época, mas insustentável a longo prazo. Hoje, 50 anos após a independência, há uma expectativa legítima de que o país rompa com essa dependência legal e avance rumo à construção de um modelo jurídico próprio, mais ajustado à sua realidade social, histórica e cultural.

É nesse contexto que surge uma proposta inovadora: a do **sincretismo jurídico angolano**. Esta abordagem reconhece que o sistema legal do país não pode ser reduzido a uma mera repetição do modelo colonial, mas sim entendido como uma fusão de diversas tradições jurídicas. Essa mistura inclui o direito consuetudinário (os costumes locais), os vestígios da herança colonial portuguesa, influências africanas regionais e as estruturas constitucionais modernas.

O sincretismo jurídico procura, assim, reconciliar o pluralismo – a coexistência de vários sistemas legais – com a necessidade de um centro normativo único, que garanta unidade e coerência. Essa visão vai além das imposições coloniais e reconhece o papel ativo das comunidades e dos legisladores angolanos na construção de um sistema que responda às necessidades do país.

Enquanto conceito, o sincretismo jurídico oferece um caminho pós-colonial de desenvolvimento legal, promovendo um direito angolano genuíno, capaz de dialogar com as suas raízes e com os desafios atuais. Esse é o verdadeiro desafio que se coloca para os próximos anos: sair da sombra do modelo português e afirmar um direito que seja simultaneamente nacional, moderno e funcional.

Neste sentido, a realização de congressos sob o rótulo de “lusofonia jurídica”, apesar de bem-intencionada, pode perpetuar uma lógica de dependência e imobilismo. O que Angola – e outros países de língua portuguesa – precisam é de um salto em direção à autonomia doutrinária, jurisprudencial e normativa, valorizando a língua comum, mas sem aprisionar-se a modelos que já não servem nem mesmo no seu país de origem.

A verdadeira celebração dos 50 anos de independência passa também por afirmar uma independência do pensamento jurídico. Só assim será possível construir um direito que reflita a identidade angolana e que esteja à altura dos desafios do século XXI.

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