Em Moçambique, a escolha do sucessor de Filipe Nyusi (o actual presidente da República) como candidato a presidente da República pelo partido dominante FRELIMO foi uma espécie de novela que muita emoção suscitou em Angola.
Em primeiro lugar, os namoros com um terceiro mandato para Nyusi foram rapidamente abandonados. Nyusi não teve qualquer apoio e viu-se remetido a uma quase prateleira ainda antes do final do mandato. Depois, aparentemente, o Comité Central da FRELIMO responsável pela escolha do candidato dividiu-se, recusou a indicação apresentada por Nyusi, houve demissões, provavelmente gritos, ameaças e vestes rasgadas. No final, foi escolhido um desconhecido e possível candidato de consenso, o governador de Inhambane, Daniel Chapo.
Em Angola, muitos apressaram-se a estabelecer paralelos, esperando um MPLA igualmente dividido e em perda para as futuras eleições de 2027.
Contudo, aqui o tema é um pouco mais complexo, e o drama poderá ser ainda maior do que em Moçambique, com o MPLA provavelmente a precisar de um Congresso Extraordinário clarificador antes de qualquer outra decisão.
Nos últimos tempos, tem sido criada uma ideia na opinião pública que retira equivalência entre os Congressos Ordinários e Extraordinários do MPLA, segundo a qual só os primeiros têm legitimidade para rever estatutos e tomar grandes decisões.
Na verdade, não é assim. Um Congresso do MPLA é sempre um Congresso soberano e tem amplos poderes. A única diferença entre o Congresso Ordinário e um Extraordinário é de natureza temporal.
O Congresso chama-se Ordinário quando “ocorre numa periodicidade fixa quinquenal” (artigo 74.º, n.º 3 dos Estatutos do MPLA) e Extraordinário quando “ocorre em período não definido, quando convocado de modo excepcional para deliberar sobre assuntos urgentes e inadiáveis” (artigo 74.º, n. 4 dos Estatutos do MPLA). Quanto ao resto, as suas competências são idênticas. Isso resulta do artigo 75.º dos Estatutos do MPLA, o qual versa sobre a competência do Congresso e não faz qualquer distinção entre Ordinário e Extraordinário, bem como do artigo 140.º, que atribuiu a revisão dos Estatutos a um Congresso, continuando sem fazer qualquer distinção entre Ordinário e Extraordinário.
Bem se sabe que, onde a lei não distingue, não devemos nós distinguir (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus), velho princípio jurídico ainda recentemente reafirmado pelo Supremo Tribunal de Justiça português em 2019.
E qual a razão para ser necessário um Congresso Extraordinário do MPLA de revisão dos Estatutos, antes de qualquer decisão sobre a sucessão presidencial?
É que, neste momento, fruto de uma qualquer iluminação jurídica que não entendemos, os Estatutos do MPLA prevêem duas formas, e não uma, para designar o candidato do partido à Presidência, querendo isto dizer que, por absurdo, o partido poderá ver-se na contingência de ter aprovado dois candidatos diferentes a uma mesma eleição.
Vejamos. De um lado, o artigo 81.º q) dá poderes ao Comité Central do partido para “deliberar sobre o candidato a Presidente da República”, a que se junta o artigo 91.º, n.º 3, c), segundo o qual compete ao Bureau Político “propor os candidatos ao cargo de Presidente da República, para eleição pelo Comité Central”.
Por estas normas, o processo de selecção de candidaturas a presidente da República parece simples. O Bureau Político faz uma selecção que remete ao Comité Central para deliberação.
Mas existe outro lado. O artigo 120.º estabelece que “o Presidente do Partido encabeça a lista de candidatos, pelo círculo nacional, sendo candidato a Presidente da República”. Ora, aqui já não há um processo de escolha via Bureau Político e Comité Central, mas um automatismo. O presidente do Partido é, por inerência, candidato presidente da República. E o presidente do Partido é eleito pelo Congresso (artigo 75.º, d).
Temos duas vias de resposta para a mesma pergunta.
Em teoria, pode ser possível que o Congresso do partido eleja um presidente do partido, que se torna automaticamente candidato a presidente da República. Por sua vez, o Comité Central pode aprovar outro candidato a presidente da República, tudo de acordo com a letra dos Estatutos.
Das duas, uma: ou um jurista eminente do partido consegue explicar o segredo da operação destas normas estatutárias ou, efectivamente, estamos perante uma monumental confusão. O processo de escolha do sucessor de João Lourenço pode ser bem mais complicado do que o moçambicano. Teríamos novela não para um fim-de-semana, mas para vários meses.
Para qualquer analista legal, o tema é demasiado sumarento para ser deixado em claro, e tem o potencial político explosivo de garantir uma efectiva divisão formal do MPLA, com dois candidatos legítimos a presidente da República. Maior confusão seria difícil de conceber.