O jornalista e ativista dos direitos humanos Rafael Marques de Morais recusou publicamente a medalha comemorativa dos 50 anos da Independência de Angola, alegando que não fez nada para merecer tal distinção e criticando duramente o contexto em que as celebrações ocorrem: uma epidemia de cólera que já causou quase 700 mortes no país.
A honraria, que está a ser entregue a 697 personalidades pela Presidência da República, tem como objetivo reconhecer contribuições relevantes na construção e consolidação do Estado angolano. No entanto, para Rafael Marques, a distinção não se justifica no atual cenário de crise social e institucional.
“Nada fiz para merecer” e “a independência está a ser comemorada com cólera”
Em entrevista à agência Lusa, Rafael Marques expressou respeito pelos condecorados que, segundo ele, “deram o seu melhor por Angola”, mas declarou não se sentir merecedor da homenagem. Mais que isso, apontou a incoerência de se celebrar a independência num momento em que o país sofre com problemas básicos de saúde pública:
“São 50 anos de independência e ainda temos surtos de cólera que ceifam centenas de vidas, por falta de saneamento básico e investimento na saúde. Isso não é celebração. É o triunfo da má governação.”
Para o ativista, o povo angolano precisa de políticas públicas eficazes, não de cerimônias simbólicas. Ele defende que a verdadeira homenagem aos 50 anos de independência seria a entrega de condições de vida dignas à população — como educação, emprego e acesso à saúde.
“O cidadão não precisa de festa, precisa de futuro para os seus filhos. Sem isso, qualquer comemoração é apenas artifício”, disse.
Rafael Marques relatou ainda um episódio que considera ilustrativo da burocracia e da falta de sensibilidade por parte das autoridades. Uma escola primária construída com esforço conjunto da sociedade civil e do setor privado numa zona rural da província da Lunda Sul foi rejeitada pelas autoridades locais. O motivo? A falta de computadores — mesmo em uma região sem energia elétrica.
“Construímos uma escola com amor, num local sem investimento público. Mas não foi aceita porque ‘faltam computadores’. Que sentido isso faz? É um absurdo que desestimula qualquer tentativa real de desenvolvimento”, criticou.
Para Rafael Marques, receber uma medalha enquanto presencia “atos administrativos e políticos que fragmentam a sociedade” seria uma forma de compactuar com práticas que, segundo ele, impedem o desenvolvimento humano em Angola. Sua recusa é, portanto, um ato de resistência e denúncia:
“Não posso compactuar com esse cenário. Prefiro manter a coerência com aquilo em que acredito.”
A medalha dos 50 anos da independência é entregue em duas categorias: **Classe Independência**, dedicada a figuras históricas da luta contra o colonialismo, e **Classe Paz e Desenvolvimento**, que reconhece a contribuição à paz e à construção do país. Entre os homenageados estão nomes como Pepetela, Bonga, Paulo Flores, Pedro Mantorras e o arcebispo Zacarias Kamwenho.
No entanto, as cerimônias têm sido marcadas por controvérsias. A exclusão de figuras históricas como **Jonas Savimbi (UNITA)** e **Holden Roberto (FNLA)** já havia causado mal-estar na primeira ronda de homenagens. Agora, as recusas de personalidades como Rafael Marques, e a ausência de outros como o cantor **Bonga** e os escritores **Pepetela** e **Luandino Vieira**, reforçam o debate sobre o verdadeiro significado dessas distinções.
A recusa de Rafael Marques traz à tona uma reflexão urgente: de que forma Angola está a celebrar sua história, e como pretende escrever seu futuro? A independência foi conquistada há meio século, mas os desafios de desenvolvimento, justiça social e igualdade continuam no centro das reivindicações populares. E sem enfrentá-los, qualquer medalha pode soar vazia diante da realidade do povo.