A ida do jogador francês do PSG para o Real Madrid pode criar a sensação de “concorrência desleal”, mas pode também criar um problema grande a Ancelotti e, por extensão, a Mbappé e ao Real.
Adicionar Kylian Mbappé a uma equipa que venceu seis das últimas 11 Ligas dos Campeões – e duas das últimas três – deveria ser catalogado como “batota”. Esta é a ideia mais evidente que sai da notícia confirmada nesta segunda-feira, que trouxe a transferência do atacante francês para o Real Madrid. Ao mundo isto pode soar quase a concorrência desleal, mas o cenário é um pouco mais complexo do que isso.
Com Mbappé em Madrid adensa-se, por um lado, uma forte probabilidade de legado único para o jogador e o clube, e isso não pode ser negligenciado na análise, mas cria-se, por outro, um considerável cenário de risco. E não é possível responder já qual das opções vencerá.
Antes de qualquer outra coisa, vamos a factos: Mbappé assinou contrato por cinco temporadas, e foi só isso que anunciou o Real, e vai, diz a imprensa internacional, ganhar cerca de 80 milhões de euros por temporada, bastante menos do que teria ido ganhar na Arábia Saudita, no ano passado.
Este era um amor antigo, mas o lado romântico levou o Real a considerar que amor gratuito é melhor do que amor pago, pelo que preferiu adiar Mbappé para agora, quando poderia ter conseguido há um ano. Mas lá está ele agora e “à borla” – com boas aspas, daquelas bem grandes, que o prémio de assinatura rondará os 100 milhões de euros.
Vai para o local certo?
Outro facto, e este é dos importantes, é que chega a uma equipa que faz de boa parte da sua vida a conquista da Champions. E Mbappé também tem feito disso boa parte da sua – o problema é que sem sucesso.
Junta-se a fome à vontade de comer? Em teoria, sim. O Real fica ainda mais forte do que já é, podendo continuar a liderar a Europa, e Mbappé ganha uma equipa com talento, treinador, estatuto e até aura únicos no futebol do continente. Perfeito? Talvez. Mas não é garantido que seja.
Mbappé não tem conseguido levar o PSG à glória – e talento ao lado não lhe faltou –, pelo que um eventual falhanço no Real suscitará desde logo algumas dúvidas sobre se é ali que está o problema.
E aqui entra-se na dimensão do legado. Porque Mbappé pode, por um lado, ser quem conduziu a máquina do Real à glória, mas pode, por outro, ser apenas mais um dos que o fizeram. Nenhuma das teses é claramente mais lógica, porque escolher uma delas dependerá do que acontecer a partir de Setembro.
Mas há, também no plano táctico, razões de sobra para adensar o potencial risco.
No Real Madrid, Carlo Ancelotti montou um 4x4x2 que tem tanto de interessante como bizarro.
Um 4x4x2 precisa, pelo menos, de um ponta-de-lança mais posicional? Ali, não há. Um 4x4x2 precisa, pelo menos, de um extremo mais puro e que esteja sempre em largura, para abrir a defesa e arrastar o lateral? Ali, não há. Um 4x4x2 precisa de um falso 9 ou de um 10 mais técnico e forte entre linhas? Ali, não há.
Mas tudo aquilo funciona. Vini e Rodrygo defendem no centro, mas, em momento ofensivo, partem do corredor para deixarem o centro livre para Bellingham, que não parte dali, mas surge vindo de trás. Valverde, que ninguém sabe se é um médio interior ou um ala, e Camavinga, que ninguém sabe se é um 6 ou um 8, compensam, fisicamente, o menor fulgor de Kroos e Vini sem bola. Rodrygo e Bellingham têm dias.
Teria tudo para correr mal, mas tem, afinal, tudo para correr bem. O problema é onde encaixar Mbappé.
Na posição de Vini faria todo o sentido: partiria da esquerda ou da meia-esquerda, como gosta, mas também poderia pisar a zona central sem partir de lá. Mas Vini é Vini e não faria sentido tirar do “onze” ou colocar na direita aquele que é, por hoje, um dos melhores do mundo.
Mas Mbappé também é. Nessa medida, pode Carlo Ancelotti dar a Mbappé um papel mais de avançado-centro? Pode. Mas aí vai arrastar marcações para essa zona e, nessa medida, sobrepovoar de adversários o local por onde Bellingham gosta de aparecer, tirando influência ao inglês.
E vai, acima disso, obrigar o próprio Mbappé a jogar de costas para a baliza e sem espaço para “embalar” em condução e um contra um.
Pode ser criado um 4x4x3 mais clássico, com Bellingham nas costas de Vini, Rodrygo e Mbappé? Pode, mas isso obriga a tirar um dos trabalhadores, provavelmente Valverde, reduzindo a capacidade sem bola e deixando a equipa com três ou mesmo quatro jogadores inúteis no momento defensivo.
Rodrygo pode ser sacrificado e, com isso, Mbappé ou Vini partirem da direita, mantendo tudo o resto na mesma? Sim, mas isso reduzirá o impacto daquele a quem for pedido isso, já que ambos são mais fortes na esquerda – além de que tirar Rodrygo seria, por estes dias, uma heresia.
A equação não é de solução evidente, havendo prós e contras em todas elas. O Real Madrid já passou por isso quando teve Figo e Beckham para a mesma posição ou, noutra dimensão, Kaká e Özil. Agora, terá Mbappé, Bellingham e Vini, mas se há alguém capaz de resolver o problema é Carlo Ancelotti.