O Recenseamento Geral da População e Habitação (RGPH) de 2024, promovido como o primeiro censo digital da história de Angola, terminou envolto em controvérsias. Apesar da promessa de inovação tecnológica, o processo ficou marcado por denúncias de má gestão, falta de transparência e deficiências operacionais graves.
Segundo informações apuradas, o Governo angolano desembolsou cerca de 20 mil milhões de kwanzas (cerca de 21,8 milhões de dólares) à empresa LiraLink – Assistência Técnica, Lda., ligada à fornecedora chinesa ZTE Corporation, para o fornecimento de mais de 60 mil tablets, carregadores e powerbanks. Os pagamentos foram realizados em três tranches entre 16 de julho e 6 de agosto de 2024, pouco antes do início do censo, que decorreu de 19 de setembro a 19 de novembro.
O orçamento total do RGPH foi de 53,5 mil milhões de kwanzas, dos quais 37% foram destinados à aquisição dos dispositivos eletrónicos. No entanto, os dados oficiais do Ministério das Finanças apontam que os montantes pagos referem-se à compra de apenas 540 tablets e carregadores. A Comissão Multissectorial de Apoio à Realização do Censo (CMARC), ao ser confrontada com esta informação, considerou a descrição “um erro grave”, mas recusou-se a esclarecer o número exato de equipamentos adquiridos.
Apesar do investimento milionário, o coordenador da CMARC, general Francisco Furtado, admitiu que não havia dispositivos suficientes para cobrir todo o território nacional. Em diversas regiões, os recenseadores partilhavam um único carregador para cinco tablets e enfrentaram sérias dificuldades de acesso à eletricidade.
Um exemplo marcante é o do supervisor Tiago Tchimbassi, que caminhou durante nove horas até à sede municipal do Cubal, na província de Benguela, apenas para carregar um powerbank. Um esforço extremo que contrasta com o valor elevado despendido pelo Estado em equipamentos que deveriam estar prontos para enfrentar as dificuldades logísticas do país.
Além dos problemas com os dispositivos, o software instalado nos tablets foi descrito como confuso, e os recenseadores não receberam a formação adequada. Segundo especialistas ouvidos pelo portal Maka Angola, a formação foi tardia, realizada sem que os equipamentos estivessem disponíveis, e sem mecanismos básicos de validação automática dos dados, recurso já utilizado no censo empresarial de 2019-2020.
“O aplicativo instalado nos tablets era complicado, e o pessoal não teve treinamento adequado para usá-lo”, afirmou Tiago Tchimbassi.
A experiência do RGPH2024 evidencia que a simples adoção de tecnologia não é suficiente para assegurar a eficiência dos serviços públicos. Sem planeamento, supervisão e responsabilização, os investimentos tornam-se ineficazes e contribuem para perpetuar uma cultura de improviso e desperdício.
Especialistas alertam que a inovação tecnológica, sem uma base sólida de governação e compromisso com a transparência, transforma-se numa fachada que encobre os vícios estruturais do Estado.
Angola, afirmam, precisa mais do que ferramentas modernas: necessita de instituições sólidas, capazes de gerir os recursos com competência, responsabilidade e respeito pelos cidadãos.