Portugal está a enfrentar uma crise silenciosa, mas alarmante: a escassez de medicamentos nas farmácias. Em 2024, mais de metade das farmácias portuguesas — pelo menos 1.545 das cerca de 3.000 — notificaram casos de rutura de stock, uma realidade que continua em 2025. A situação afeta principalmente medicamentos para diabetes, défice de atenção, hiperatividade, além de dispositivos como sensores de glicémia.
O cenário é grave e preocupa as autoridades de saúde, profissionais farmacêuticos e, principalmente, os doentes. Segundo o Relatório Anual da Gestão da Disponibilidade de Medicamentos, a falta de resposta à prescrição médica em menos de 12 horas já se tornou rotina em muitos estabelecimentos.
A vice-presidente da Associação de Farmácias de Portugal (AFP), Manuela Pacheco, aponta duas causas principais para este cenário:
- Margens de lucro dos laboratórios: Há pouco incentivo para os produtores destinarem medicamentos a Portugal, já que outros mercados oferecem margens mais atrativas. Como consequência, o país perde prioridade na distribuição internacional.
- Prescrição abusiva e uso indevido: Medicamentos como os antidiabéticos, antes direcionados ao controlo da diabetes tipo 2, passaram a ser prescritos também para perda de peso, devido ao seu efeito redutor de apetite. Isso ampliou exponencialmente a procura.
“A molécula foi inicialmente pensada para tratar a diabetes, mas como também leva à perda de peso, passou a ser recomendada para tratar a obesidade. O problema é que a produção tinha um objetivo e agora tem dois”, explicou Pacheco à Euronews.
Outro fator surpreendente é o uso crescente de sensores de glicémia por desportistas e frequentadores de ginásios. Estes dispositivos, essenciais para o controlo diário da diabetes, tornaram-se populares entre atletas para medir desempenho físico.
“Temos relatos de que esses sensores estão a ser vendidos em ginásios. Muitos usam para saber como o corpo reage ao treino, o que é preocupante porque retira o acesso a quem realmente precisa deles por questões médicas”, alerta a vice-presidente da AFP.
A resposta das autoridades não tardou. O Infarmed (entidade reguladora dos medicamentos em Portugal) iniciou um processo de auditoria em todo o circuito do medicamento — desde os fabricantes e distribuidores até às farmácias e prescritores — para detetar eventuais abusos e desvios na utilização dos fármacos e dispositivos médicos.
O objetivo é verificar se os medicamentos comparticipados estão a ser usados de forma indevida, penalizando a sua real função: tratar doentes crónicos. Também está em avaliação a possibilidade de que certos medicamentos só tenham comparticipação quando prescritos por especialistas, como endocrinologistas.
A escassez de medicamentos não é exclusiva de Portugal. Outros países europeus também enfrentam este problema. No entanto, o fator económico pode tornar o caso português mais delicado.
“Se um laboratório vende para vários mercados, irá priorizar aquele que oferece melhor retorno financeiro. Se Portugal não rever os preços, deixará de ser atrativo”, conclui Manuela Pacheco.
A falta de medicamentos essenciais, aliada ao uso não terapêutico de fármacos e dispositivos médicos, pode representar um risco sério para a saúde pública em Portugal. O país precisa rever urgentemente as políticas de comparticipação, o controle de prescrições, e garantir que o acesso aos tratamentos continue a ser uma realidade para os doentes que deles dependem.