Sobreviventes e familiares das vítimas do alegado golpe do 27 de Maio de 1977 criticam “propaganda” da comissão de reconciliação criada pelo executivo angolano e desafiam a Civicop a apresentar testes de ADN às ossadas.
As associações M27 (órfãos), Grupo de Sobreviventes do 27 de Maio de 1977 e Associação 27 de Maio (sobreviventes e familiares das vítimas), que integram a Plataforma 27 de Maio, alertam, em comunicado, para o facto de não estarem a ser seguidos os procedimentos internacionalmente aceites para a identificação dos restos mortais, na sequência de uma reportagem divulgada na Televisão Popular de Angola (TPA).
Exibida no passado sábado, a reportagem dá conta da descoberta de três valas comuns no Huambo, que poderão conter corpos de 90 vítimas, identificando alguns nomes de figuras ligadas ao MPLA, partido no poder desde a independência de Angola, em 1975).
A reportagem aponta também os esforços da Comissão angolana para a Implementação do Plano de Reconciliação em Memória das Vítimas dos Conflitos Políticos (Civicop) e do executivo angolano na busca das ossadas, sem aludir aos supostos executores.
Em 27 de maio de 1977, uma alegada tentativa de golpe de Estado, aparentemente liderada por Nito Alves – ministro da Administração Interna desde a independência (11 de novembro de 1975) até outubro de 1976 – foi violentamente reprimida por ordem do Presidente angolano, Agostinho Neto, resultando na execução de milhares de pessoas.
A Plataforma 27 de Maio sublinha que Angola não dispõe da tecnologia de “ADN em ossos” que permita efetuar a correspondência com material genético fornecido pelos familiares e critica que as famílias estejam “apartadas do processo”, contrariando as normas institucionais sobre a matéria.
O comunicado realça que, anteriormente, a Civicop aceitou a colaboração de uma equipa dirigida pelo especialista forense português Duarte Nuno Vieira, que concluiu que as ossadas supostamente pertencentes a José Van Dunem, Sita Valles, Rui Coelho e outros dirigentes não tinham qualquer ligação aos mesmos, levando os familiares a denunciar a entrega dos restos mortais como “um exercício de crueldade”.
A Civicop, acusam, “mantém a opção pelo faz de conta, embuste e propaganda, sendo lamentável a participação de governadores, autoridades tradicionais e outros, bem como o desrespeito pelos sentimentos das famílias das vítimas do Huambo, a quem não foi prestada informação prévia”.
A Plataforma 27 de Maio denunciou a “campanha de propaganda da Civicop” e apelou à “implementação de procedimentos aceites internacionalmente, bem como à criação de uma genuína Comissão da Verdade, que contribua para uma efetiva Reconciliação Nacional”.
Solicitou ainda a apresentação pública dos certificados dos testes de “ADN em ossos” e a colaboração de especialistas independentes e internacionais ja que Angola não dispõe da tecnologia de extração de “ADN em ossos” que permita identificar os corpos.
A Civicop foi também acusada de violar os princípios que estiveram na sua origem pela UNITA – principal partido da oposição angolana que travou uma guerra de quase três décadas contra as forças governamentais — que se desvinculou desta entidade em dezembro do ano passado, na sequência de reportagens exibidas pela TPA que mostravam escavações de sepulturas na Jamba, antigo território da UNITA.
No período de dois anos que se sucedeu ao alegado golpe de Estado de 27 de maio de 1977, conhecido como “fracionismo” e que muitos descrevem como uma luta interna entre fações do MPLA (“nitistas”, apoiantes de Nito Alves, e “netistas”, de Agostinho Neto) milhares de pessoas foram presas, torturadas e mortas.
Seis dias antes, o Movimento Popular de Libertação de Angola (MLPA) expulsara Nito Alves do partido, levando o antigo ministro e vários apoiantes a invadirem a prisão de Luanda para libertar outros simpatizantes, assumindo paralelamente o controlo da estação da rádio nacional.
As tropas leais a Agostinho Neto, com apoio de militares cubanos, acabaram por restabelecer a ordem e prenderam os revoltosos, seguindo-se o que ficou conhecido como uma “purga”, que visava a eliminação de uma das fações, tendo sido mortas cerca de 30 mil pessoas, segundo a Amnistia Internacional, na maior parte sem qualquer ligação a Nito Alves,
Em 2019, o Presidente angolano, João Lourenço, criou a Civicop, encarregada do plano geral de homenagem às vítimas dos conflitos políticos, que ocorreram em Angola entre 11 de novembro de 1975 e 04 de abril de 2022, e dois anos depois pediu desculpas às famílias, em nome do Estado angolano.