Estreou há dias no festival de cinema de Roterdão o documentário “Mário”sobre a figura do líder de libertação angolano Mário Pinto de Andrade. Realizado pelo americano Billy Woodberry, realizador pertencente ao ‘LA Rebellion’, movimento de jovens cineastas afro-americanos que tem procurado dar relevo à comunidade negra americana, este filme centra-se essencialmente sobre o percurso político de Mário Pinto de Andrade.
Nascido em Agosto de 1928 no norte de Angola, Mário Pinto de Andrade, faz os seus estudos primários e secundários em Luanda, antes de seguir para Lisboa em 1948 para, designadamente filologia clássica. É nestas circunstâncias, na casa dos Estudantes do Império, que vai travar conhecimento com estudantes e intelectuais de outras partes de África lusófona, nomeadamente Amílcar Cabral e Eduardo Mondlane. Com eles participa nas actividades culturais relacionadas com África, tendo sido um dos fundadores, em 1951, do Centro de Estudos Africanos.
Em 1954, parte rumo a Paris para estudar a sociologia na Sorbonne. Muito activo tanto política como culturalmente, é em Paris que vai conhecer Léopold Sédar Senghor e Nelson Mandela. é também nessa altura que conhece a sua futura mulher, a cineasta de origem antilhesa Sarah Maldoror, considerada a pioneira do cinema africano.
Independentista, envolvido na organização dos encontros dos movimentos de libertação que decorreram durante os anos de luta, primeiro presidente do movimento que contribuiu para fundar, o MPLA, Mário Pinto de Andrade, foi cedo posto de parte da direcção desse partido, palco de divisões internas, bem antes da independência. Mário Pinto de Andrade não deixa contudo o activismo e será, nomeadamente ministro da cultura do primeiro executivo pós-independência da Guiné-Bissau. Antes de morrer em Londres, em 1990, vai igualmente envidar esforços para se alcançar a paz no seu país.
É esta história, o percurso de uma figura muito densa, que se conta no filme “Mário”, com o testemunho que pessoas que o conheceram de perto, com arquivos e com o fio condutor de uma entrevista concedida nos anos 80 à jornalista portuguesa Diana Andringa.
Teresa Gusmão, produtora associada, ligada à produtora portuguesa “divina comédia” que tornou este filme possível, contou à RFI a génese deste projecto.
“A verdadeira génese é a participação de Billy Woodberry num programa de cinema português com os arquivos do ‘Harvard Film Archive’, um programa chamado ‘Harvard na Gulbenkian’ que em 2014 foi produzido pelo produtor deste filme, o Alexandre Santos, e onde os filmes da ‘LA Rebellion’ foram convidados, nomeadamente o do Billy Woodberry ‘Bless Their Little Hearts’. Ele já tinha alguma relação com Portugal, tinha visitado e desde a altura desse movimento, nos anos 80 em que fez este filme, que ele lia sobre as lutas de libertação de Portugal, sobretudo sobre Amílcar Cabral e um poeta angolano chamado Mário Pinto de Andrade. Ele entretanto decidiu encetar em Portugal esse projecto” conta Teresa Gusmão que participou activamente na elaboração do filme.
O filme foi construído designadamente com os testemunhos de quem lutou, foi amigo e íntimo de Mário Pinto de Andrade. Henda Ducados, uma das duas filhas de Mário Pinto de Andrade e de Sarah Maldoror, falou do pai neste documentário e disse à RFI o que achou do resultado do filme.
“Eu achei o filme muito interessante. O filme surpreendeu-me pelo facto de ouvir a história na primeira pessoa, quando é o o próprio Mário que conta a história dos seus pais, alguns acontecimentos históricos, é um filme que para mim é carregado de emoções. A única coisa que lamento um pouco é que é um filme que destaca principalmente a dimensão política. Não destaca suficientemente a dimensão cultural e intelectual”, diz Henda Ducados.
Questionada sobre este aspecto, Teresa Gusmão explica a opção de o filme se focar sobretudo no perfil político de Mário Pinto de Andrade.
“Todas as notas que ele tem em relação a todos os documentos ou dos artigos que publicou e que coleccionou, têm o cuidado de ficar organizados por temas por cronologia e com um rigor de interpretação. E ele, ele Mário Pinto de Andrade, privilegia esta questão política” refere a produtora associada.
Também presente no filme, o economista guineense Carlos Lopes dá conta da importância que Mário Pinto de Andrade teve na sua vida. Então jovem estudante, Carlos Lopes conheceu-o quando ele se tornou ministro da cultura na Guiné-Bissau, no final dos anos 70, antes do golpe de 1980.
“Foi a primeira pessoa com quem trabalhei. Eu estava numa situação de não poder continuar mais os estudos na Guiné-Bissau (…) Não havia universidade, eu queria continuar a aprender e, por um conjunto de circunstâncias, o meu pai tinha participado na ajuda à luta de libertação nacional, acabou por ser preso pela PIDE, quando saiu, tinha uns amigos muito próximos na direcção superior do PAIGC que frequentavam a casa (…) e um em particular, o comandante ‘Gazela’, que disse que me ia apresentar um angolano que era uma figura intelectual e que provavelmente poderia fazer alguma coisa por mim” conta Carlos Lopes ao recordar a época em que Mário Pinto de Andrade, então a residir na Guiné-Bissau, lhe pediu para organizar a sua biblioteca.
“Fiquei sob a asa dele e foi ele que depois conseguiu uma bolsa para eu ir estudar para a Suíça. Fiquei com essa dívida moral, em dívida também emocional para com ele, mas o mais importante é que ele me ensinou toda a gramática do pan-africanismo, introduziu-me nos métodos de pesquisa e foi através dos ensinamentos de Mário Pinto de Andrade que eu conheci Amílcar Cabral no detalhe, porque ele era o seu biógrafo e também o seu alter-ego, e passei um grande estudioso da obra de Cabral que influencia tudo o que faço até hoje”, recorda o economista guineense.
É também a dimensão intelectual de Mário Pinto de Andrade que sobressai na memória de Henda Ducados que em 30 anos de vida em Angola, tem trabalhado activamente para que o pai seja lembrado na história do seu país, nomeadamente através da estrutura que fundou com a irmã, Annouchka de Andrade, a Associação dos Amigos de Sarah Maldoror e Mário de Andrade.
“O legado principal (dos dois) para mim é o amor às belas letras, a humildade, a emancipação cultural. Dizia que tudo passa pela leitura. é isso que tento transmitir à minha filha. O segundo legado também são os arquivos porque, olhando bem, nós temos um acervo fantástico, preservado, estruturado, tanto do lado da Sarah Maldoror, como do lado de Mário Pinto de Andrade, que está disponível obviamente, mas que está a ser utilizado pelas universidades. Temos algo para partilhar”, diz Henda Ducados ao evocar as diversas iniciativas que organiza com a associação que coordena juntamente com a irmã, no sentido de dar a conhecer a vida e obra dos pais, Sarah Maldoror e Mário Pinto de Andrade.
Ao considerar que a figura do pai e o seu contributo para a história de Angola têm vindo paulatinamente a ser reconhecidos, Henda Ducados constata todavia que ainda “há um grande caminho a percorrer, mesmo se houve bastantes melhorias, uma maior abertura, mas tudo isso é um processo”.