Paris foi um abrigo para muitos exilados portugueses e inscreveu-se no mapa das lutas políticas contra a ditadura e a guerra colonial. Comités de apoio a desertores, jornais, concertos de música de intervenção, teatro, angariação de fundos para as famílias de presos políticos e para os trabalhadores em luta em Portugal foram algumas das formas encontradas na emigração para resistir à ditadura portuguesa.
Entre 1961 e 1974, houve cerca de 9.000 desertores e 20.000 refractários, aos quais se juntaram 200.000 homens que nunca compareceram quando chamados pelos regimentos. Os dados são do historiador Miguel Cardina, baseado nos arquivos do exército português e retomados na obra “Refuser la Guerre Coloniale” (2019). A maioria exilou-se em França, outros instalaram-se no Luxemburgo, na Suécia, nos Países Baixos, na Dinamarca, na Alemanha, na Bélgica e no Reino Unido. Paris era quase sempre um local de passagem obrigatório e muitos jovens eram ajudados por redes familiares ou de amizade, organizações políticas e caritativas francesas e comités de apoio aos desertores.
“Algumas dezenas” de exilados portugueses passaram pelo 15 Rue du Moulinet, em Paris, a casa onde vivia Vasco Martins depois do Maio de 68. Eram insubmissos, desertores e refractários que recusavam a guerra colonial. A história de Vasco Martins é contada no documentário “As Mãos Invisíveis”, de Hugo dos Santos, porque Vasco foi um desses anónimos que ajudou o movimento de apoio aos desertores.
Fomos à Associação Memória Viva, presidida por Vasco Martins, em Paris, para viajarmos até àqueles tempos de luta. Ele começa por contar que foi viver para o número 15, Rue du Moulinet, depois de ter participado no Comité de Acção de Paris 14 durante o movimento de Maio de 68.
No fim desse ano, fui para uma casa em Paris e nessa casa tive a oportunidade de começar a receber. Eu tinha condições possíveis para receber refractários e desertores e foi assim que começou. Quer dizer, não era realmente um comité nessa altura, mas foi aí que começou realmente a desenvolver-se. Eram refractários e desertores que vinham de Portugal, que atravessavam a Espanha clandestinos e que chegavam a França. E era a maneira de poder albergar e tentar arranjar-lhes trabalho de maneira a que as pessoas se pudessem desenrascar.
Vasco Martins não sabe, ao certo, quantas pessoas acolheu, mas diz que foram “algumas dezenas”, não apenas jovens que saíam de Portugal antes de serem mandados para a guerra nos territórios colonizados, mas também “desertores que vinham da frente dos combates, nomeadamente da Guiné-Bissau”.
Anos mais tarde, Vasco Martins descobriu que estava na mira da PIDE, assim como a sua casa na rua do Moulinet.
Foi uma coisa que só vi muitos anos depois, na Torre do Tombo, onde estava realmente o meu mandado de captura pela PIDE. O 15 Rue du Moulinet foi denunciado e no comunicado da PIDE estava o meu nome completo. A PIDE dizia que tinha desmantelado uma rede de apoio aos refractários e desertores, que essa rede ia até o 15 Rue du Moulinet. Realmente estava um comunicado da PIDE, onde exigiam a minha captura. Houve jovens que falaram no café ou noutros sítios e chegou à PIDE através de bufos.
O que o motivava a abrir a sua casa a tanta gente era, em primeiro lugar, “a vontade de acabar com a guerra colonial”. Depois, porque esperava que “em Portugal se criasse um regime realmente democrático que defendesse os interesses dos trabalhadores”. Por outro lado, acreditava simplesmente que era o seu “dever”.
Vasco Martins era também refractário. Em Abril de 1961 foi à inspecção e em Setembro deveria começar a tropa. Totalmente contra a guerra colonial, que começou em Fevereiro desse ano, em Angola, Vasco deixou Setúbal rumo a Paris no Verão, a bordo de uma carrinha de ostras. Se a polícia perguntasse, era simplesmente o ajudante para carregar e descarregar a mercadoria que ia de Setúbal para Turim, na Itália.
Pouco tempo depois de chegar a França, Vasco Martins começou a participar nos comités de apoio às famílias dos presos políticos em Portugal.
A minha primeira actividade, logo nos primeiros anos em que eu cheguei a Paris, foi participar no apoio às famílias dos prisioneiros políticos. Havia reuniões, nomeadamente na Rua Vaugirard, onde – na altura não me tinha apercebido, mas depois apercebi-me – havia realmente pessoas ligadas ao Partido Comunista Português e também a uma parte da Igreja Católica, padres, operários portugueses que participavam activamente nas campanhas que eram feitas. Vendíamos senhas e o dinheiro angariado era levado para Portugal para ajudar as famílias dos presos políticos.
O combate continuou com a angariação de fundos para os trabalhadores em luta em Portugal e com a ajuda aos portugueses que já estavam ou chegavam a França.
Nas associações e clubes, não só havia as actividades do futebol, havia as actividades de música, teatro e também procurávamos dar uma certa ajuda social no sentido de preencher os documentos em relação à assistência social e tudo isso. Por outro lado, era também falar a propósito da situação em Portugal. Criámos boletins e também jornais, nomeadamente o Jornal do Emigrante. Foi um dos primeiros a serem criados. Era graças ao apoio da Liga Portuguesa do Ensino e da Cultura Popular que distribuíamos e vendíamos também nos mercados e à volta de Paris e dentro de Paris também.
Os fundos também eram angariados em festas, nas quais participavam cantores como José Mário Branco, Tino Flores, Francisco Fanhais e outros. O montante angariado e o destino do dinheiro era depois afixado nas associações e também, por exemplo, no jornal O Alarme, criado em 1972, em Grenoble, e que era vendido em Paris e noutras cidades.
No clube da juventude franco-portuguesa, Vasco Martins também participou na campanha de denúncia internacional da deportação do opositor Mário Soares para São Tomé e Príncipe, assim como na campanha para libertar outro resistente à ditadura, o dirigente da LUAR Hermínio da Palma Inácio, quando este conseguiu fugir da prisão da PIDE no Porto e foi capturado em Espanha.