Fonte: DW
O grupo de 10 cidadãos invoca o artigo 148 da Constituição da República de Moçambique, que estabelece que “o Presidente da República não pode, salvo nos casos expressamente previstos na Constituição, exercer qualquer outra função pública e, em caso algum, desempenhar quaisquer funções privadas”.
Os queixosos entendem que, ao presidir à FRELIMO, o partido no poder, Filipe Nyusi está a violar este princípio.
Em entrevista à DW, o presidente da primeira comissão da Assembleia da República, António Boene, entende que este é um “facto inédito” e se o Conselho Constitucional decidir a favor dos queixosos, isso terá um impacto “enorme” no país.
“As pessoas já estão habituadas a ver um Presidente todo-poderoso”, diz Boene, e reduzir o poder político do Presidente da República “provavelmente” não seria “de fácil aceitação”, destaca.
DW África: Esta queixa procede, tendo em conta a realidade política moçambicana?
António Boene (AB): Em termos formais, os 10 cidadãos têm legitimidade para requerer aquele tipo de ações. Agora, é preciso verificar materialmente que também iriam respeitar aquilo que está estabelecido na Lei Orgânica do Conselho Nacional para a procedura desse tipo de ações.
DW África: Esta questão de incompatibilidade é um debate antigo. No seu entender, porque é que o Presidente da República continua a desempenhar o papel de Presidente da República e, ao mesmo tempo, de líder do partido?
AB: Isto já é uma prática reiterada, que ainda está muito ligada à própria natureza do partido FRELIMO. É a primeira vez, pelo menos que eu tomo conhecimento, que um grupo de cidadãos ou qualquer outra entidade submete este tipo de ação no Conselho Constitucional. Agora, o Conselho Constitucional deve naturalmente decidir e, em função disso, vai-se em jurisprudência e, a partir daí, naturalmente, teremos que obedecer ou respeitar a decisão que será tomada pelo Conselho Constitucional, porque ela é irrecorrível e é de aplicação imediata.
DW África: Na eventualidade do Conselho Constitucional decidir a favor dos queixosos, que impacto isso poderá ter na reorganização do Estado moçambicano?
AB: Enorme, porque, em termos de concepção, o próprio partido FRELIMO nunca conseguiu sequer conceber uma possibilidade de alguém que não fosse presidente do partido poder dirigir o Estado ou alguém indicado pelo partido FRELIMO não poder, simultaneamente, dirigir o Estado e dirigir também o partido. Isso, naturalmente, vai alterar todo o paradigma que até aqui existia e começar-se a pensar seriamente, se for esse o caso, em ter mais uma espécie de bicefalia de poder neste país, quer dizer, um poder político enraizado no partido e depois o poder do Estado, exclusivamente do Estado, que será, naturalmente, domiciliado no chefe do Estado. E vai ser, naturalmente, um convívio novo.
DW África: Convívio novo, mas também muito difícil.
AB: É verdade. E isso também leva-me para uma outra perspectiva. Não será tempo de começarmos a pensar no nosso sistema de governação, termos um Presidente da República que não representa nenhum partido e está ali para servir a todos os moçambicanos e que não há razões de desconfiança que se possa beneficiar um ou outro partido e termos um governo que vai ser o verdadeiro executivo. Quem sabe, não pensamos num sistema sim presidencialista ou sim parlamentar?
DW África: Sendo deputado, acha que isso será facilmente aceite pelos poderes já estabelecidos no país?
AB: Não, não, não. Será muito complicado. Aliás, isto é até uma questão cultural, as pessoas já estão habituadas a ver um Presidente todo poderoso e reduzir poderes ao Presidente, principalmente o poder político ao Presidente da República, provavelmente não seja de fácil aceitação.
DW África: E o facto desta questão ter sido submetida quase no final de um mandato, não terá impactos para o novo executivo que sairá das eleições de outubro?
AB: Se porventura o Conselho Constitucional decidir isto em tempo útil e se for favorável à pretensão desses grupos de cidadãos, então significa que o Presidente da República vai ficar numa situação em que terá que optar renunciar ao cargo de chefe de Estado ou renunciar ao cargo de presidente do partido. Qualquer uma dessas decisões naturalmente terá as suas consequências e repercussões quer a nível do Estado, quer a nível também do próprio partido FRELIMO, se porventura o candidato da FRELIMO for eleito Presidente da República, já condiciona o seu mandato na nova legislatura.